Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social ) como todo o corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e retrata uma realidade, que lhe é exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia
(Mikhail Bakhtin, Marxismo e Filosofia de Linguagem)
Alguns comentários sobre o meio e a mensagem na internet.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A Extrema Direita no Poder


Piketty: como colocar a extrema direita no poder

Economista adverte: taxar Marine Le Pen de “populista”, tentando deslegitimar suas críticas a uma globalização devastadora, só irá jogá-lo nos braços dos eleitores


Por Thomas Piketty, com tradução do IHU

Em menos de quatro meses, a França terá um novo presidente. Ou uma presidente: depois de Trump e do Brexit, não se pode excluir que as pesquisas, mais uma vez, estejam erradas, e que a direita nacionalista de Marine Le Pen esteja se aproximando da vitória. E, mesmo que se conseguisse evitar o cataclismo, existe um risco real. O risco Le Pen é capaz de se posicionar como a única oposição credível para a direita liberal para a rodada posterior.

No lado da esquerda radical, espera-se, naturalmente, no sucesso de Jean-Luc Mélenchon, mas, infelizmente, não é o cenário mais provável.

Essas duas candidaturas têm um ponto em comum: põem novamente em discussão os tratados europeus e o regime atual de concorrência exacerbada entre países e territórios, e isso atrai muitos daqueles que a globalização deixou para trás. Há também diferenças substanciais: apesar de uma retórica destrutiva e de um imaginário geopolítico às vezes inquietante, Mélenchon conserva, apesar de tudo, uma certa inspiração internacionalista e progressista.

O risco desta eleição presidencial é que todas as outras forças políticas – e a grande mídia – se contentem em fustigar essas duas candidaturas e em colocar ambas no mesmo saco, definindo-as como “populistas”. Esse novo insulto supremo da política, já utilizado nos Estados Unidos com Sanders, com o resultado que sabemos, corre o risco, mais uma vez, de ocultar a questão de fundo.

O populismo nada mais é do que uma resposta, confusa mas legítima, ao sentimento de abandono das classes populares dos países desenvolvidos diante da globalização e da ascensão da desigualdade. É preciso confiar nos elementos populistas mais internacionalistas (e, portanto, na esquerda radical, encarnada nos diversos países pelo Podemos, pelo Syriza, por Sanders ou porMélenchon, independentemente dos seus limites) para construir respostas precisas a esses desafios: caso contrário, o encurvamento nacionalista e xenófobo acabará por abalar tudo.



Infelizmente, é a estratégia da negação que os candidatos da direita liberal (Fillon) e do centro (Macron), estão se preparando para seguir, determinados, ambos, a defender o status quo integral sobre o fiscal compact, o pacto de orçamento europeu assinado em 2012. Não que isso chame a atenção, já que um o negociou, e o outro o aplicou. Todas as pesquisas confirmam isto: esses dois candidatos seduzem, acima de tudo, os vencedores da globalização com nuances interessantes (os católicos com o primeiro, e os burgueses radical-chic com o segundo), mas, em última análise, secundárias em relação à questão social. Eles pretendem encarnar o perímetro da razão: quando a França tiver reconquistado a confiança da Alemanha, de Bruxelas e dos mercados, liberando o mercado de trabalho, reduzindo os gastos públicos e os déficits, eliminando o imposto patrimonial e aumentando o IVA, então finalmente será possível pedir que os nossos parceiros venham ao nosso encontro a respeito da austeridade e da dívida.

O problema desse discurso que parece ser razoável é que ele não o é de todo. O tratado de 2012 é um erro monumental, que aprisiona a zona do euro em uma armadilha mortífera, impedindo-a de investir no futuro. A experiência histórica mostra que é impossível reduzir uma dívida pública desse nível sem recorrer a medidas excepcionais. A menos que se condenem a registrar superávits primários durante décadas, sobrecarregando no longo prazo qualquer capacidade de investimento.

De 1815 a 1914, o Reino Unido passou um século registrando excedentes orçamentais enormes para reembolsar os seus rentistas e reduzir a dívida exorbitante produzida pelas guerras napoleônicas. Essa escolha nefasta produziu investimentos em formação inadequados e um novo impasse do país. Entre 1945 e 1955, ao contrário, Alemanha e França conseguiram se desembaraçar rapidamente de uma dívida de proporções semelhantes com uma combinação de medidas de cancelamento da dívida, inflação e saques excepcionais sobre o capital privado, colocando-se em condições de investir no crescimento.

Seria preciso fazer o mesmo hoje, impondo à Alemanha um Parlamento da zona do euro para aliviar as dívidas com toda a legitimidade democrática necessária. Se não for assim, o atraso nos investimentos e a estagnação da produtividade já observados na Itália acabarão por se estender para a França e para toda a zona do euro (já há sinais nesse sentido).

É mergulhando novamente na história que conseguiremos sair do impasse atual, como acabaram de recordar os autores da magnífica Histoire mondiale de la France, ótimo antídoto aos encurvamentos identitários tricolores. De maneira mais prosaica e menos divertida, é preciso aceitar também mergulhar nas primárias organizadas pela esquerda de “governo” (chamamo-la assim, pois não conseguiu organizar primárias com a esquerda radical, algo que corre o risco, em primeiro lugar, de afastá-la de modo estável justamente do governo).

É essencial que essas primárias designem um candidato decidido a colocar drasticamente em discussão novamente as regras europeias. Hamon e Montebourg parecem mais próximos dessa linha do que Valls ou Peillon, mas com a condição de que superem as suas posições sobre a renda universal e o made in France e, finalmente, formulem propostas específicas para substituir o pacto fiscal de 2012 (mencionado apenas de passagem no primeiro debate da televisão, talvez porque, há cinco anos, todos votaram nele: mas é precisamente por isso que é ainda mais urgente esclarecer as coisas, apresentando uma alternativa detalhada) [Benoit Hamon, o candidato mais à esquerda do Partido Socialista, venceu o primeiro turno das “primárias cidadãs”, em 22/1. Ele enfrentará o candidato neoliberal Manuel Valls no segundo turno destas primárias (Nota de “Outras Palavras”)].

Nem tudo está perdido, mas é preciso agir com pressa, se se quiser evitar colocar a Frente Nacional em uma posição de força.



segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

COMO SERÁ A VIDA NO FUTURO: A MEDICINA GANANCIA, A ELIMINAÇÃO DOS IDOSOS, A EUTANÁSIA E A PILULA DA MORTE.



8 de janeiro de 2017

As mudanças anunciadas pelo Dr. Dunegan na conferencia de Pittsburg são aterrorizantes, contudo, a maioria dessas mudanças já faz parte do cotidiano e, embora muitos já se tenham acostumado a algumas delas como previam os planejadores, nada mudou quanto ao planejamento da vida e da morte para os seres humanos no século 21.

Na sequência estão os temas tratados por Dr. Richard Day numa conferência de medicina em 1969, que revelam as mudanças já planejadas há muito tempo atingindo todos os aspectos da vida das pessoas no Século 21. Esta matéria é a continuação de Como será a vida no futuro: as armas para a aniquilação das pessoas – da liberalidade à submissão, das gravações do Dr. Lawrence Dunegan e relacionadas com uma conferência que ele participou em 20 de março de 1969 ministrada pelo Dr. Richard Day em Pittsburg, nos Estados Unidos a um auditório de 80 médicos presentes.

A eutanásia e a “pílula da morte”.

Todos têm o direito de viver apenas uma certa quantidade de tempo limitado. Os velhos já não serão mais úteis, se tornarão um fardo… preparem-se para aceitar a morte. A maioria das pessoas já são velhas. Um limite de idade arbitrário pode ser estabelecido. Afinal, você tem direito apenas a um certo número de jantares com carne grelhada, uma certa quantidade de orgasmos e atingiu muitos dos grandes prazeres da vida. Depois de ter tido o suficiente e não ser mais profissionalmente produtivo e contribuir, então você deverá preparar-se para sair da frente e abrir caminho para a nova geração. Algumas coisas que irão ajudar as pessoas a perceber que eles já viveram o suficiente, e ele mencionou várias, mas não me lembro de todas elas, é o uso de tinta mais leve nos formatos que devem preencher os idosos para que eles tenham que ir a uma pessoa mais jovem para ajudá-los a ler. Padrões de tráfego de automóvel – haverá mais padrões de alta velocidade que fazem as pessoas mais velhas com menos reflexo tenham necessidade de evitar e, assim, perder parte da sua independência.

Limitar o acesso aos cuidados de saúde facilita a eliminação dos mais adultos.

Um grande problema foi que os cuidados de saúde em algum momento tornaria-se demasiado caro. O cuidado de saúde estará ligado intimamente ao emprego das pessoas, mas ele vai ter um custo proibitivo para que não seja acessível a pessoas depois de uma certa idade. A menos que eles tenham algumas famílias muito ricas e parceiros terão de viver sem cuidados de saúde. A idéia é que se todos dizem “Basta! que terrível fardo é para os jovens tentar manter os velhos”, então, os jovens tratariam de ajudar seus pais e suas mães ao longo do caminho assumindo as coisas de uma forma humana e com dignidade. O exemplo foi – as crianças poderiam fazer uma festa de despedida maravilhosa, uma celebração. Mamãe e papai fez um ótimo trabalho. No final da festa, ambos tomam a “pílula da morte”.

Planificação do controle sobre a medicina

O tema seguinte foi a medicina. Alterações profundas serão apresentadas no campo da medicina. Em geral, o medicamento seria mais estritamente controlado. A seguinte observação foi feita: “O Congresso não vai concordar com o seguro nacional de saúde. É bastante evidente já (em 1969). Mas isso não é necessário. Nós temos outras maneiras de controlar a cuidados de saúde “. Eles se apresentarão de forma mais gradual. Mas todos os serviços de cuidados de saúde serão fornecidos com um controle mais rigoroso. Os serviços médicos vão ser muito conectados com o trabalho. Se uma pessoa não trabalha ou não pode trabalhar não vai a ter acesso aos cuidados de saúde. Os dias de prestação de serviços de cuidados de saúde gratuitos em hospitais serão extintos gradualmente até se tornarem praticamente inexistentes. Os custos serão aumentados a força de uma maneira que as pessoas não poderão pagá-los a menos que tenham seguro de saúde. As pessoas pagam, você paga pelo serviço, você tem direito ao serviço. Foi somente depois que comecei a perceber na medida em que não estaria pagando por serviços. Seu seguro de saúde será pago por outras pessoas. Portanto, as pessoas vão aceitar essa proposta muito agradecida, de joelhos, pois será oferecido como um privilégio. O seu papel sendo responsável por seus próprios cuidados para a sua saúde seria reduzido significativamente. Como um inciso; isso é algo que não foi desenvolvido naquela época… Eu não fui capaz de entender naquela época como um inciso, a forma como ele funciona, porque todo mundo está dependente do seguro. Se você não tem seguro paga diretamente; os custos dos seus cuidados de saúde são enormes. A companhia de seguros, no entanto, não paga pelos mesmos serviços as mesmas cifras.

O custo dos cuidados de saúde vão ser extremamente altos. Os serviços médicos estarão ligados intimamente com o trabalho, mas será muito alto para que eles não estejam disponíveis para as pessoas depois de uma certa idade… poderia ter uma festa de despedida maravilhosa, uma celebração. Mamãe e papai fez um ótimo trabalho. No final da festa, ambos tomam a “pílula da morte”. O medicamento será monitorado com mais cuidado. Nós temos outras maneiras de controlar a cuidados de saúde. Todos os serviços de saúde será estritamente controlada. Os custos será aumentado dramaticamente para que as pessoas não podem pagar por eles sem seguro de saúde. Todo mundo vai depender de seguros. Se um não é certeza que será para pagar diretamente para serviços a preços proibitivos.

Se a você lhe cobram digamos US$ 600 pelo uso de uma sala de operação, a empresa de seguros não pagará US$ 600 para o seu serviço. Ela paga US$ 300 ou US$ 400. Esse diferencial no faturamento tem o efeito desejado: isso permite à empresa de seguros pagar pelo que você nunca poderia por conta própria. Eles obtêm um desconto que nunca estaria disponível para você. Quando você vê a conta você se sente agradecido que a empresa de seguros pagou por ela. Desta maneira você depende deles e é praticamente necessário para você ter um seguro de saúde. O faturamento é completamente fraudulento. De todas formas, continuando com nosso tema, o acesso aos hospitais será estritamente controlado. Será solicitado documento de identificação para entrar às edificações. A segurança em hospitais e na área circundante será estabelecida e gradualmente aumentada de modo que ninguém possa entrar sem identificação ou passear no interior do hospital. Roubo de equipamento de hospitais, coisas como máquinas de escrever e microscópios, será “permitido” e exagerado. Os relatórios desses roubos vai ser inflado de tal forma que servem como a desculpa necessária para aumentar a segurança até que as pessoas se acostumarem com isso. Qualquer um que vagueiam dentro do hospital terá que levar uma identificação de crachá foto ou de outra forma que explica por que ele está no hospital, um empregado, técnico de laboratório, visitante ou quem quer seja. Isto vai ser implementado gradualmente fazendo que todo o mundo se acostume à idéia de que têm que se identificar, até que simplemente seja uma prática aceitada. Esta necessidade de portar crachás de identificação para circular vai ser iniciada aos poucos: hospitais e algumas clínicas mas gradualmente se incrementará para incluir todos em toda parte! Foi observou também que os hospitais podiam ser usados para confinar as pessoas… para o tratamento de criminosos. Isto não significava tratamento médico, necessariamente. Nessa época eu não conhecia o termo “hospital psiquiátrico” – da maneira como é usado na União Soviética, mas sem ter necessidade de recordar todos os detalhes, basicamente, ele estava descrevendo o uso de hospitais tanto para tratar as pessoas doentes como para confinar criminosos por razões diferentes ao bem-estar médico do criminoso. A definição de criminoso não foi estabelecida.

Eliminação dos médicos particulares

A imagem do doutor irá mudar. Eles não serão mais vistos como profissionais médicos individuais que atendem a pacientes particulares. O médico vai ser cada vez mais reconhecido como um técnico altamente qualificado e a natureza do seu trabalho será diferente. As suas atividades incluem coisas como as execuções por injeção letal. A imagem desse doutor poderoso e independente terá que ser mudada. E ele continuou: “Os médicos estão fazendo muito dinheiro. Eles devem comercializar os seus serviços como qualquer outra pessoa ou produto”. Os advogados também vão ter que comercializar. Tenha em mente que o público à que ele se dirigia era conformado por médicos e ele mesmo era um médico.

Era interesante ver que ele fazia comentários um tanto insultantes ao seu público sem sentir temor de que o contrariassem. O médico independente será coisa do passado. Uns quantos obstinados tratarão de se manter, mas a maior parte dos médicos trabalharão para instituções de diferentes tipos. A prática profissional de grupo vai ser motivada, as corporações serão motivadas e, uma vez que a imagem corporativa dos cuidados para a saúde mudem, a medida que este esquema se torne mais e mais aceitável, os médicos cada vez se converterão mais em empregados em vez de contratistas independentes. De acordo com isso, é claro, não é necessaário dizer que um empregado atende a seu chefe, não a seu paciente. Já temos visto suficientemente isso durante os últimos vinte anos. E no horizonte mais coisas estão por vir. O termo HMO[1] não se usava nessa época e é o sistema para o cuidado de saúde que está sendo usado desde que o sistema de National Health Insurance (Seguro Nacional de Saúde) deixou de ser aprovado no Congreso. Alguns médicos teimosos podem tentar fugir disso permanecendo independente, entre outras coisas, sou um deles, mas vai sofrer grandes perdas de rendimento. Eles podem ser capazes de sobreviver, talvez, mas nunca viver em confortavelmente como se aqueles que estão dispostos a tornar-se a funcionários do sistema. Finalmente, não haverá lugar em tudo para os independentes depois que o sistema esteja consolidado. Casos que não foram vistos nunca antes serão apresentados. Eles serão difíceis de diagnosticar e são considerados incuráveis ​​por muito tempo. Ele não desenvolveu muito este tema, mas recordo não muito depois de haver assistido a esta conferência que cada um tinha um caso raro que eu me perguntava: “Será que isso é o que ele estava falando?”. Alguns anos depois se apresentou a AIDS e verdadeiramente creio que a AIDS era ao menos um exemplo do que ele estava falando. Eu agora penso que a AIDS é uma doença fabricada.

O faturamento é completamente fraudulento. O acesso aos hospitais será rigorosamente controlado. Esta necessidade de transportar crachá de identificação para circular serão iniciadas aos poucos: hospitais e algumas clínicas, mas aumentará gradualmente para incluir todos em toda parte! O médico independente vai ser uma coisa do passado. Alguns tentarão de forma obstinada se manter, mas a maioria dos médicos trabalharão para instituições de diferentes tipos. O termo HMO não foi usado naquela época, mas dê uma olhada no HMO, é assim que a saúde está sendo manipulada. Finalmente, não haverá lugar para os independentes depois que o sistema esteja consolidado.

Desordem Mundial - A Presença dos EUA na Segunda Guerra Fria


Convulsões capitalistas - Entrevista exclusiva com Moniz Bandeira

19 JANEIRO 2017



Historiador analisa crises, guerras e golpes na "desordem mundial" promovida pelo velho imperialismo, mas com novos métodos e roupagens

Por Aray Nabuco e Nina Fideles

O historiador e cientista político Moniz Bandeira amalgama em suas análises os cenários atuais sob as asas do velho imperialismo, porém com novos modus operandi. Crise econômica, guerras, crise humanitária, terrorismo, primaveras, golpes. A esse contexto, que emerge no noticiário todos os dias, erguendo no horizonte a sombra da barbárie no avanço da direita, Moniz Bandeira batiza de “desordem mundial”, produto de ações de uma política imperialista bombada nos métodos e nas tecnologias. No seu mais recente livro, A Desordem Mundial, que se soma à sua profícua bibliografia onde está obras como A Presença dos Estados Unidos no Brasil ou a A Segunda Guerra Fria, Moniz Bandeira explica como chegamos a isso, empurrados pelo neoliberalismo e suas pautas ultraconservadoras, pelo capitalismo financeiro, pelo domínio das corporações.



“Você pode imaginar um mundo onde os Estados Unidos querem impor a sua dominação, o full espectrum dominance e o resultado são guerras por procuração, caos, terror, catástrofes humanitárias que afetam não apenas os países onde os conflitos se travam, cada vez maiores e em maior quantidade, mas também os países outros que não têm nada com essa intervenção”, explica ele nesta entrevista, feita desde sua casa na Alemanha, onde vive há vinte anos.

Nessa dominação se encaixam ainda os golpes de estado, sob nova modalidade, como no Brasil, Honduras ou Paraguai, tudo com o concurso sempre prestimoso da mídia conservadora e Judiciário. Dono de uma longa pesquisa sobre o xadrez político nacional ou mundial, expressa nos vários títulos de sua autoria – A Presença dos Estados Unidos no Brasil é campeão de vendas e referência ainda hoje –, Moniz Bandeira acompanha os lances atuais e aponta o rumo da barbárie. Do outro lado, diz ele, que poderia ser um contrapeso, há uma esquerda nanica ou desfigurada. Confira abaixo a entrevista.

Aray Nabuco – Gostaria que o senhor descrevesse o que chama de desordem mundial. Quais elementos (políticos, econômicos, militares, enfim) que o senhor enxerga dessa desordem?

Moniz Bandeira – O desenvolvimento da tecnologia favoreceu a concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política, que se produziu no sistema internacional após o colapso da União Soviética e do Bloco Socialista. E os Estados Unidos não conseguiram estabelecer a “new world order” que o presidente George H. W. Bush prometeu em setembro de 1991, um mês após o presidente Boris Yeltsin dissolver a União Soviética. Que ocorre no mundo? Guerras na África, Oriente Médio, Ucrânia, turbulência na Ásia, na América Latina, o Brexit, a inquietação social na União Europeia e os Estados Unidos estão financeiramente exauridos, em franco declínio. A América Latina também não escapa. A Venezuela precipitou-se no caos. O Brasil está no limiar. A desordem política aprofunda a recessão econômica e avança no sentido da desestabilização. A superestrutura jurídica está a ruir. Ninguém mais respeita a Constituição, nem juízes, nem procuradores da República nem sequer magistrados da Corte Suprema. O atual e suposto presidente da República, ao que tudo indica, será jogado no lixo da história e conhecido como Michel Temer, o breve.

Nina Fideles – Esse cenário de desordem mundial que o senhor descreve é o que também chamam de “corporocracia”, o governo das corporações?

O domínio das corporações, anulando mais a soberania nacional, está no fundo dos tratados de livre comércio, que constavam da agenda dos Estados Unidos. O Trans-Pacific Partnership (TPP) e outro similar proposto à União Europeia tiram dos tribunais do país a capacidade para decidir sobre qualquer dissídio entre uma corporação e o governo. O Estado nacional perde a jurisdição sobre as corporações. Qualquer disputa seria adjudicada a um tribunal internacional de arbitragem, composto por três membros associados do tratado. Esses tratados contém os preceitos do Investor-State Dispute Settlement (ISDS) que ferem não apenas a soberania dos demais países signatários, mas também dos Estados Unidos, razão pela qual o TPP ainda não foi aprovado pelo Congresso e Donald Trump a ele se opôs durante a campanha para presidente. Quem o defendia era Hilary Clinton, do Partido Democrata

Nina Fideles – Poderíamos comparar a “desordem” atual (conflitos na periferia do capitalismo por interesses econômicos, resumidamente) a uma nova era de “colonização” (ou re-colonização ou renovação do velho colonialismo, a dominação política e do território)?

Ao dizimar gradualmente as economias naturais e pré-capitalistas, o capitalismo vinculou todos os povos em um sistema de vasos comunicantes e tornou as sociedades interdependentes, apesar e/ou em consequência da diversidade de seus níveis de progresso e civilização. As condições históricas são outras, não mais as mesmas do século 19. O capitalismo, como o único modo de produção capaz de envolver todo o planeta, assumiu, na sua evolução, formas diferentes. Os Estados Unidos são um império, mas não como o de Roma ou da Grã-Bretanha e França. Dominam, diretamente, Hawaí, Porto Rico, Guam, Samoa, e as Ilhas Mariana do Norte. E, das 4.999 bases militares que possuem, segundo o inventário do Pentágono, 4.249 estão no seu próprio território, 88 além-mar e 662 em 36 países e territórios estrangeiros, em todas as regiões do mundo. A dominação e exploração se processam de modo diferente, embora similares em alguns aspectos. Para quê? Essas bases militares marcam o espaço do império, com tropas de ocupação, revestidas por tratados militares assimétricos, como no caso da Otan. Os Estados Unidos têm bases militares e aéreas na Alemanha e em vários outros países da União Europeia. Porém qual o país da União Europeia que tem bases militares e aéreas nos Estados Unidos?

Aray Nabuco – A Otan é um dos braços dessa desordem mundial…

Um dos braços não, a Otan é um instrumento de dominação dos Estados Unidos. Aliás, digo isso desde o começo. Desde o primeiro secretário-geral, o general Hastings Lionel Ismay, primeiro Lord Ismay (1887–1965), então secretário-geral da Otan (1952– 1957) declarou explicitamente que a criação dessa aliança encapava o múltiplo propósito de “to keep the americans in, the russians out and the germans down”, isto é, conservar a supremacia dos Estados Unidos, conter a União Soviética e submeter a Alemanha. E é o que os Estados Unidos fazem até hoje.

Aray Nabuco – E acha que eles conseguiram esse objetivo (de manter os russos fora e a Alemanha sob controle)?

Os Estados Unidos temem que a Alemanha, o coração da Europa, se volte para a Rússia. A Rússia é um país eurasiático e essa aliança implicaria um desequilíbrio geoestratégico, ainda mais porque certamente se estenderia à China. Aray Nabuco – Mas é possível haver tal aliança? É uma tendência que sempre existiu desde Bismarck (Otto Von Bismarck, 1815-1898), que defendeu essa aliança. O empresariado alemão tem na Rússia um importante mercado. E quem está mais perdendo com as sanções impostas à Rússia é a Alemanha. Agora, na Alemanha há, assim como no Brasil e em outros países, uma parte da elite, representada sobretudo pela Kanzlerin, que mais se aproxima de Washington, dado haver nascido e crescido na Alemanha Oriental, sob o regime stalinista implantado pela União Soviética, após Segunda Guerra Mundial.

Nina Fideles – O senhor cita o terror, a guerra ao terror, e essa guerra psicológica da mídia, quer dizer, colocar medo nas pessoas se tornou um instrumento da dominação atual?

Sim, disseminar o medo é uma das formas de dominação.

Nina Fideles – Mas tornou-se política de Estado? Quero dizer, os EUA financiaram o terror da Al-Qaeda, por exemplo, e continuam repetindo isso na Síria com o Estado Islâmico.

Da mesma forma que a Alemanha nazista durante os anos 1930, os Estados Unidos encontraram no militarismo, sobretudo com a Segunda Guerra Mundial, um meio de permitir ao Estado sustentar a prosperidade das empresas privadas e reduzir o número de desempregados, consignando-lhes a encomenda de armamentos e outros grandes projetos militares. Daí que, após o esbarrondamento da União Soviética, o Pentágono, à frente do complexo industrial-militar, tratou de elaborar e dimensionar novas ameaças, entre as quais o terrorismo, e pretextos para intervenções militares, dilatação da Otan, dado que não mais havia outro Estado com capacidade de desafiar os Estados Unidos e pôr em risco o sistema econômico capitalista. O terrorismo, porém, sempre ocorrera ao longo da história de modo geral, um ato político, de natureza instrumental, um método de guerra e/ou um crime político, ora praticado tanto por organizações revolucionárias ou contrarrevolucionárias, pelos radicais de esquerda ou de direita, ou fundamentalistas religiosos e grupos étnicos, quanto pelos serviços de inteligência de quase todos os Estados, nem sempre com objetivo militar, em tempo de guerra. A CIA executou exaustivamente atentados terroristas contra Cuba, também covert actions no Brasil, a fim de propiciar o clima para o golpe militar de 1964, bem como no Chile contra o governo de Salvador Allende. O terrorismo islâmico foi em larga medida fomentado pela CIA e os serviços de inteligência do Paquistão e da Arábia Saudita, desde o final dos anos 1970, não somente no Afeganistão, como também com o objetivo de desintegrar a União Soviética a partir das repúblicas da periferia asiática, onde o Islã predominava. E, atualmente, as ONGs executam, no mais das vezes, o trabalho que antes a CIA diretamente realizava.

Aray Nabuco – Retomando a “corporocracia”, e como o senhor já citou, nesse momento a Europa vive um dilema sobre os tratados transatlânticos e de serviços, que podem acabar com o estado de bem-estar social. Esse ataque é parte dessa desordem mundial?

Há um ataque ao Estado de bem-estar social, que começou desde o colapso da União Soviética. Esse ataque reflete a crise sistêmica do sistema capitalista, que se manifestou e se agravou no epicentro de sua expansão, Wall Street, com a explosão do mercado imobiliário, no primeiro semestre de 2007, quando grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais, e em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. A erupção da crise econômica e financeira, que abalou e ainda ameaça a Grécia, Portugal, Espanha e toda a Eurozona – dezesseis dos 27 estados-membros da União Europeia e outros nove não-membros da UE que adotam o euro –, constituiu um desdobramento, a terceira etapa da crise econômica e financeira deflagrada nos Estados Unidos, cujo déficit fiscal era de US$ 5,7 trilhões e a dívida pública atingia cerca de US$ 20 trilhões, a ultrapassar em mais de 104% o seu Produto Interno Bruto, em meados de dezembro de 2016. Os custos a longo prazo dos Estados Unidos, cujo problema fiscal é extremamente grave, tornaram-se progressivamente explosivos, a evoluir como espiral, em que o crescente pagamento dos juros tende a aumentar o déficit fiscal e a dívida pública, gerando novo aumento e assim por diante. E a elite financeira dominante intenta lançar o peso da crise, compensar a taxa média de lucros, em queda, sobre os ombros da classe trabalhadora, dos assalariados. Esse problema, inter alia, constitui um dos fatores da desordem mundial, dentro de um contexto em que os Estados Unidos trataram de impor a full spectrum dominance (dominação de espectro total), mas não têm meios de escalar as guerras e estão a defrontar-se com a Rússia e a China.

Aray Nabuco – O senhor acredita, diante dessa ascensão da direita e do fascismo, que caminhamos para uma nova conflagração entre potências, uma nova “guerra mundial”?

Não creio em uma conflagração direta entre as potências. Não me parece provável que as contradições internacionais cheguem a tal ponto. O desenvolvimento tecnológico, com as armas nucleares, afastou, virtualmente, a possibilidade de um confronto direto entre as grandes potências. O cartel ultraimperialista, formado pelos Estados Unidos e a União Europeia, não ousaria investir diretamente contra a Rússia ou a China. A guerra não seria um jogo de soma zero. Todos seriam destruídos.

Nina Fideles – Dentro dessa desordem mundial, como o senhor vê o papel das forças progressistas de esquerda? Como poderiam reagir ou enfrentar?

Primeiro é necessário definir o que são forças progressistas de esquerda, onde e quando, qual o contexto, a conjuntura etc. Muitas vezes forças que se dizem progressistas e de esquerda, com políticas erráticas, favorecem a ascensão da direita, do fascismo, como ocorreu na Alemanha, no início dos anos 1930, em que o Partido Comunista, por entender que a vitória de Hitler precipitaria a revolução socialista, rechaçou a aliança com a social-democracia, apelidando-a de social-fascismo. E o fato é que não haveria Hitler sem Stalin. Esquerda ou direita depende do ângulo, da equação política, das circunstâncias e condições.

Aray Nabuco – Há quem, como Eric Hobsbawm, diz que a esquerda acabou aí na Europa (e no mundo todo). O senhor acha isso também?

O que Eric Hobsbawm disse, em entrevista à agência de notícias Télam, da Argentina, foi que “já não existe esquerda tal como era”, seja social-democrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Onde está a esquerda, como antes? Eric Hobsbawm está certo.

Aray Nabuco – Ainda há os partidos comunistas, socialistas...

Vim pela primeira vez à Alemanha e França, em 1960. E moro aqui na Europa, permanentemente, há vinte anos. Conheço-a, portanto, há mais de cinquenta anos. Vivi em Londres e Paris na segunda metade dos anos 1970 e também estive em diversas cidades de outros países. E vejo a diferença nos tempos. Os sindicatos não são mais os mesmos, perderam a força, devido a diversos fatores, entre os quais a produção offshore, com a transferência das plantas industriais e, consequentemente, postos de trabalho, para outros países, do Leste Europeu e, sobretudo da Ásia, como a Indonésia, Filipinas, China, onde os custos da mão de obra são muito mais baixos. O poder de negociação dos sindicatos, restrito aos limites de seus respectivos Estados nacionais, não acompanhou o desenvolvimento da organização transnacional capitalista. As grandes corporações, com subsidiárias nos novos países indus trializados, podem contar com amplos recursos para resistir às pressões e anular, virtualmente, os efeitos de qualquer greve. A existência de poderoso exército industrial de reserva igualmente debilitou a força da classe trabalhadora. A produção offshore, em regiões com níveis salariais mais baixos, as diferentes condições sociais, políticas e outros níveis de organização dificultam a coordenação internacional, com o objetivo de paralisar, simultaneamente, todas as unidades de produção da mesma empresa espalhadas por distintos países, onde milhões de pessoas estão dispostas a vender sua força de trabalho por qualquer salário, a fim de ganhar o mínimo necessário para comprar o que comer e renovar sua força de trabalho para novamente revendê-la à empresa capitalista. Daí porque, entre outros fatores, os partidos comunistas e social-democratas perderam força. Os partidos social-democratas são, atualmente, iguais a outros partidos de centro ou centro-direita. O Partido Social-Democrata Alemão está em coligação com a CDU (União Democrata-Cristã). E a democracia cristã faz uma política similar à do Partido Social-Democrata. E a Alemanha é dos poucos países, talvez o único dos países industrializados, onde ainda o setor secundário, a indústria, é mais significativo na sua massa econômica. Nos outros da União Europeia, França e Inglaterra, assim como nos Estados Unidos, o setor terciário, de serviços, é o que mais sustenta a economia. Desde o ano 2000 mais de 5 milhões de postos de trabalho foram exportados, com a instalação das plantas offshore. E assim o sindicato de trabalhadores já não tem mais o peso de antes. E permita-me perguntar: Quem é a direita e quem é a esquerda na França?

Aray Nabuco – Pois é, não dá pra dizer que a esquerda seja o atual presidente, o François Hollande.

As bases sociais podem ser diferentes, mas a política do presidente François Hollande, do Partido Socialista, em nada se diferencia da política de seu antecessor, Nicolas Sarkozy, da Union pour un mouvement populaire (UMP). Não houve diferença fundamental nos governos. O presidente Hollande é tão conservador quanto Sarkozy. É até mais.

Aray Nabuco – Tem o Novo Partido Anticapitalista lá…

Há, mas não é expressivo, como outrora foi o Partido Comunista. Essa é a situação na Europa. E, nos Estados Unidos, a classe operária é altamente conservadora, embora a tendência de contestação ao predomínio de Wall Street esteja a crescer, como o demonstrou a candidatura de Bernie Sanders à presidência do país, dentro do Partido Democrata.

Aray Nabuco – Fica parecendo que a utopia acabou.

Ah, a utopia sim, a utopia sempre existe, mas não nos termos de antigamente. Marx continua. Em dois sentidos. Primeiro, as leis do capitalismo que ele desvendou estão válidas. Naturalmente, é necessário ver a evolução do capitalismo até o presente, uma vez que a mudança quantitativa, com a sua expansão, implicou também a mudança de qualidade. O capitalismo foi o único modo de produção que teve capacidade de expandir-se por todas as regiões, avançou da livre concorrência para o monopólio, com o aparecimentos de novas formas de e da competição interimperialista para o ultraimperialismo, conforme Karl Kautsky previu, já no início da Primeira Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra Mundial, as grandes potências capitalistas – Estados Unidos e União Europeia – formaram uma espécie de cartel, para não mais se destruírem com outros conflitos armados. O instrumento militar do ultraimperialista, manejado a partir do Pentágono, é a Otan. A revolução socialista na Alemanha que Lenin ansiava não se efetivou.

Aray Nabuco – Diante desse cenário, com forças da esquerda enfraquecidas e ascensão da direita, o senhor acha que tem como a esquerda se recompor nos moldes, digamos, de antes?

Não entramos no mesmo rio duas vezes.

Nina Fideles – O 1%, o grupo de pessoas mais ricas entre a população mundial, domina as corporações que, por sua vez, dominaram os estados e governos. Há quem enxergue no fim desse movimento uma espécie de plutocracia, o senhor acredita nessa possibilidade?

Não se trata de possibilidade. Trata-se de realidade. A free enterprise e o free market engendraram, como na selva, a acumulação de riqueza e a desigualdade estrutural de poder. A desigualdade de renda atingiu, em 2013, o nível mais elevado desde 1928: 1.645 homens e mulheres controlavam maciça parte do acervo financeiro global, um montante de US$ 6,5 trilhões. E essa elite financeira é que detém o poder mundial.

Nina Fideles – Sobre o Brasil, como o senhor avalia o governo em exercício? Estamos sendo vítimas dessa “desordem mundial”?

Que governo? O que vejo no Brasil é uma tragicomédia, um teatro de marionetes, manejado pelo capital financeiro nacional e internacional, o esforço para aplicar o quanto mais rápido possível um programa econômico elaborado previamente ao golpe parlamentar-judiciário, com o respaldo da mídia corporativa, em meio a uma lawfare (guerra jurídica), cujo objetivo é desmontar alguns andaimes da estrutura econômica e política do Brasil. E por que a força-tarefa da Operação Lava Jato não investiga a corrupção das multinacionais do petróleo e outras no Brasil? Por que não investiga o lobby da Chevron e a razão pela qual o Senado aprovou rapidamente o Projeto n° 131, que retirou da Petrobras a condição de operadora única do petróleo nas camadas pré-sal da costa do Brasil? Serão as multinacionais impolutas? A força-tarefa da Operação Lava Jato, porém, atacou a Petrobras, a Eletronuclear e as grandes empresas construtoras, paralisando toda a sua cadeia produtiva, a contribuir para aumentar ainda mais a recessão e o desemprego. A operação Lava Jato a cumprir seu papel. Aluiu importantes andaimes da estrutura para desenvolvimento econômico do Brasil.

Aray Nabuco – Se for pensar no futuro desse golpe, qual o senhor enxerga?

Nenhum.

Aray Nabuco – Os EUA querem instalar bases na Argentina. Seria este país o braço fiel dos EUA aqui na América Latina?

A situação política na Argentina não está ainda definida.

Nina Fideles – E o que ocorreria com o equilíbrio geopolítico caso os EUA conseguissem instalar de fato uma base na América do Sul? Podemos antever ou fazer um exercício de análise sobre esse cenário?

Não posso fazer análise sobre um cenário que é muito incerto e difuso. Muito depende das diretrizes políticas que Donald Trump adotar, como presidente dos Estados Unidos.

Aray Nabuco – O senhor lançou nos anos 70 o livro Presença dos Estados Unidos no Brasil. De lá para cá, o senhor vê alguma mudança dessa presença? Como é que o senhor vê uma evolução, uma linha de tempo?

Claro que houve mudança. Depois de Presença dos Estados Unidos no Brasil, publiquei Brasil-Estados Unidos: a rivalidade emergente, As relações Perigosas – De Collor a Lula e Brasil, Argentina e Estados Unidos, entre outros. História é movimento, é mudança e permanência na mudança. E mudança na relação do Brasil com os Estados Unidos sempre houve, desde que ocorreu a proclamação da República, mediante um golpe de Estado, desfechado pelo marechal Deodoro da Fonseca, em 1889, tendo por trás o dedo do secretário de Estado americano, James G. Blaine, conforme o visconde de Ouro Preto denunciou no New York World, em 3 de março de 1891. E o jornalista Aristides Lobo, primeiro ministro da Justiça do governo Provisório, disse, em crônica no Diário Popular, de São Paulo, que “o fato (o golpe que derrubou o imperador Dom Pedro II) foi deles (militares) só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, supresso, sem conhecer o que significava”. E é essa República que está em decomposição.



terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O Fato Consumado Obama - A Ameaça de Guerra no Leste Europeu como Último Ato.



EUA fazem chover tanques sobre o leste europeu: O que podem fazer Putin e Trump?

9/1/2017, Fort Russ (de SVPressa, trad. ru.-ing. de J. Arnoldski, aqui retraduzido)




Na 6ª-feira, 6 de janeiro, centenas de tanques, caminhões e outros veículos militares dos EUA foram descarregados no porto alemão de Bremerhaven. O navio de transporte Resolve [lit. 'decisão', 'firmeza'] entregou a carga como parte do descolamento do grupo da 3ª brigada blindada de combate da 4ª divisão de infantaria, para a Europa Oriental. Dia 8 de janeiro, chegaram carregados à costa alemã mais dois navios de transporte dos EUA, Freedom e Endurance.

Em Bremerhaven, os veículos militares estão sendo transferidos para vagões para serem mandados para seus locais de destino atravessando Alemanha e Polônia. Segundo as Forças Armadas Unificadas da Alemanha [Bundeswehr], o transporte das forças exige 900 vagões, numa cadeia de 14 km de comprimento total. Espera-se que os soldados norte-americanos serão levados primeiro a Romênia, Bulgária e Lituânia. O Pentágono não informou sobre o destino de seus soldados em território europeu.

Os planos de Washington para instalar uma brigada blindada na Europa Oriental foram divulgados em abril do ano passado. Segundo o comandante do Comando Europeu das Forças Armadas [ing. European Command of the US Armed Forces (EUCOM)], general Philip Breedlove, seria uma reação contra as políticas "agressivas" do Kremlin. No papel, o plano dos EUA parece impressionante: devem ser deslocados para o leste da Europa 4.200 soldados, 250 tanques, howitzers e veículos militares, bem como 1.700 outros veículos de transporte.

A decisão de deslocar essa 3ª brigada para a Europa custou muito cara ao Pentágono. A Casa Branca anunciou que o deslocamento planejado de mais armas e equipamentos para a Europa, para 2017, custaria mais de $3,4 bilhões. Esse número é quatro vezes mais alto que o previsto no orçamento de 2016.

A nova brigada será diferente das duas outras brigadas do Exército dos EUA já estacionadas na Alemanha e Itália. Não serão construídos novos alojamentos na Polônia, Romênia, Bulgária ou nos países do Báltico. O pessoal e o equipamento da brigada serão trocados a cada nove meses e serão fracionados em unidades melhores que cobrirão, rotativamente diferentes países. Assim fazendo, Washington insiste que não estaria agredindo a Lei OTAN-Rússia de 1997, pela qual a aliança estaria impedida da instalar "forças de combate substanciais" na Europa Ocidental.

Os planos do Pentágono provocaram forte reação do Kremlin. O representante permanente da Rússia na OTAN, Alexander Grushko, declarou que "estão cada vez mais complicando relações já muito difíceis" entre Rússia e OTAN. O enviado da Rússia caracterizou as intenções dos líderes militares dos EUA como "mais um passo na direção de reforçar a transição da OTAN na direção de esquemas de segurança cada vez mais confrontacionais".



Esses planos serão modificados quando Donald Trump assumir o poder? Como a Rússia pode responder aos reforços para a OTAN na Europa Oriental?

O principal especialista do Centro para Estudos Políticos-Militares do Instituto de Relações Internacionais Estatal de Moscou e doutor em ciências políticas Mikhail Aleksandrov responde:

Barack Obama ordenou o envio à Europa da 3ª brigada blindada antes do planejado. Originalmente, lembro a todos, a operação estava marcada para fevereiro de 2017. Está sendo feito, claro, como uma das decisões da cúpula de Varsóvia da OTAN, de enviar quatro batalhões táticos para a Polônia e os estados do Báltico. 
Aqui, é preciso ter em mente que os grupos de batalhões táticos têm infraestrutura para rápido deslocamento, como brigadas inteiras. O pessoal pode ser aerotransportado e o equipamento já está à espera em depósitos. Essas serão as brigadas do Ocidente mais rigorosamente prontas para combate na Europa, e ainda contam com o apoio do exército polonês que já é força considerável. Além disso, a aviação pode ser rapidamente trazida da Alemanha ou, mesmo, dos EUA. 
Resultado disso, no período de duas semanas, os EUA podem ter ali uma poderosa força de ataque, na fronteira da região de Kaliningrad.

De nosso lado, temos três divisões completas ali, mais a Frota do Báltico. A OTAN contudo poderia defletir as forças de nossa frota, com grupos navais adicionais no Báltico onde, de fato, já estão estacionados navios alemães e poloneses. Em outras palavras, o ocidente pode realmente estabelecer superioridade de forças em torno de Kaliningrad.

Svobodnaya Pressa perguntou a Aleksandrov como esse deslocamento pode ser confrontado. Resposta dele:

Podemos aumentar nossas forças agrupadas na própria região de Kaliningrad. Mas é território pequeno, não é possível postar ali grandes tropas. Além disso, todas as forças que ali ficarem estarão na área de impacto direto. Significa que se a OTAN decidir atacar primeiro, nossas tropas serão em grande parte postas fora de ação.
Minha opinião é que a melhor opção é criar dois exércitos de tanques nas fronteiras de Latvia e Lituânia. Nesse caso, a OTAN logo saberá que não tomará Kaliningrad. Ainda que Belarus permaneça neutra dada a atual política 'bamboleante' de Alexander Lukashenko, nossos exércitos de tanques poderão mover-se pela Latvia, tomar a Lituânia e rapidamente alcançar as fronteiras da região de Kaliningrad.
Nesse caso, nosso grupo de Kaliningrad teria de garantir-se por dois ou três dias, e nossos exércitos de tanques poderiam esmagar o exército polonês e as brigadas norte-americanas. O que realmente importa, repito é que a OTAN não tem qualquer dúvida de que nós os esmagaremos nessa região sem usar armas nucleares, porque a OTAN está apostando tudo na hipótese de que não usaremos armas nucleares; por isso está contando com uma superioridade em armas convencionais.

Perguntado se entendia que Trump poderia reverter os planos do governo Obama para reforçar sua presença na Europa Oriental, Aleksandrov respondeu:

Acho que pode. Mas Obama está fazendo de tudo para bloquear essa possibilidade. Se o deslocamento da brigada fosse deixado para fevereiro, como planejado, nesse caso Trump, que deve tomar posse dia 20 de janeiro, poderia adiar o deslocamento dos soldados até ter tempo de negociar com Vladimir Putin, quando poderia até cancelar toda a operação.
Mas agora Trump não pode retirar as tropas, ou será alvo dos mais graves ataques de todos os russófobos e outros membros do Partido Democrata. Obama o está obrigando a agir com máxima cautela.

O que o Kremlin pode fazer nessa situação? Aleksandrov continuou:

Putin, creio eu, precisa levantar a questão, em conversações, de que a OTAN tem de se comprometer a cumprir a palavra de não deslocar forças substanciais para a Europa Oriental e retirar de lá os exércitos dos EUA. Sem isso, Putin estará obrigado a tomar as contramedidas adequadas. 
Além disso, o próprio Trump terá de decidir se quer continuar a confrontar a Rússia, ou mudar o rumo da política exterior dos EUA. Em teoria, pode nos chantagear com o aumento das forças no Leste Europeu, tentando obter concessões na Síria e também nas questões do Irã e da China.

Mas essa política de chantagem, caso Trump realmente opte por ela, será política de fracasso. Nós não recuaremos e acabaremos por forçar os EUA a trazerem mais e mais tropas para o front leste-europeu. Efeito disso é que Washington terá de dividir as forças com que confronta Pequim ou, até, para controlar problemas no Oriente Médio. Trump deve refletir cuidadosamente antes de optar por escalar nas tensões entre Rússia e EUA.

O vice-diretor do Centro Taurida de Análise e Informação do Instituto Russo de Estudos Estratégicos, Sergey Ermakov, é bem claro nesse ponto:

É possível corrigir a rota da OTAN no leste europeu, mas não acontecerá em futuro próximo. É muito importante para os norte-americanos manter uma presença militar na linha de frente. Além disso, as leis anti-Rússia que Obama sancionou nos estertores de seu governo têm sua inércia. Trump terá de considerar isso. Não é coincidência que analistas políticos norte-americanos acreditem que Trump encontrará à sua frente barreira muito alta de impedimentos, que bloquearão qualquer tentativa de aproximação com a Rússia.
Além disso, a questão de o que acontecerá com a OTAN surge agora com todo o peso. Ao longo de anos recentes, vários centros de força uniram-se à aliança, um dos quais são os países da Europa Ocidental, i.e., neófitos prontos a apoiar os EUA em tudo, mais a Turquia, que está jogando agora um grande jogo de política externa.

Tudo isso faz da OTAN ferramenta essencialmente importante para os EUA, apesar de tudo que Trump diz sobre a inutilidade da aliança. A OTAN é o grande instrumento da política militar dos EUA, o principal. Para manter viva e à tona essa sua aliança vital, e para justificar a própria existência dela, os norte-americanos precisam ter presença militar 'real' na Europa Oriental.*****





segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Edward Said - Ocidente x Oriente - A Falácia do Mundo Ocidental.

Análise: O choque de ignorâncias

por: EDWARD SAID


O artigo "O Choque de Civilizações?", de Samuel Huntington, foi publicado na edição da primavera de 1993 do periódico "Foreign Affairs", onde imediatamente atraiu atenção e reações em volume surpreendente. Como o artigo visava suprir os americanos com uma tese original sobre a "nova fase" da política mundial iniciada com o término da Guerra Fria, os argumentos de Huntington pareciam convincentes e soavam amplos, ousados, até mesmo visionários.

Estava claro que ele se dirigia a seus rivais entre os cientistas políticos -teóricos como Francis Fukuyama e sua idéia do fim da história- e também às multidões que saudaram o início do globalismo, o tribalismo e a fragmentação do Estado. Mas, afirmou, eles tinham compreendido apenas alguns dos aspectos desse novo período. Ele próprio se propunha a anunciar o que seria "o aspecto crucial, até mesmo central" do que "a política global provavelmente será nos próximos anos".


Sem hesitar, ele prosseguiu: "A idéia que proponho é que a fonte fundamental de conflitos neste novo mundo não será de natureza principalmente ideológica, nem econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte predominante de conflito serão culturais. Os Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nos assuntos mundiais, mas os principais conflitos da política global vão se dar entre países e grupos que fazem parte de civilizações distintas. O choque de civilizações vai dominar a política mundial. As linhas divisórias entre as civilizações formarão as frentes de batalha do futuro."


A maior parte do argumento apresentado nas páginas seguintes se baseava numa idéia vaga do que Huntington chamava de "identidade de civilizações" e nas "interações entre as sete ou oito (sic) principais civilizações", sendo que o conflito entre duas delas, o islã e o Ocidente, recebe a parte do leão de sua atenção.


Para fundamentar esse pensamento agressivo, Huntington se baseia em um artigo publicado em 1990 pelo veterano orientalista Bernard Lewis, cujas cores ideológicas ficam manifestas no título, "As raízes da ira muçulmana". Em ambos os artigos afirma-se de maneira impensada a personificação de entidades tremendas, "Ocidente" e "islã", como se questões extremamente complexas tais como identidade e cultura existissem num mundo semelhante ao das histórias em quadrinhos, onde Popeye e Brutus se enfrentam sem dó e o pugilista com mais virtudes se sai melhor do que seu adversário.


Com certeza nem Huntington nem Lewis têm tempo a perder com a dinâmica e a pluralidade internas de cada civilização, nem com o fato de que a disputa principal, na maioria das culturas modernas, diz respeito à definição ou interpretação de cada cultura, e com a possibilidade pouco atraente de que, quando alguém se atreve a falar em nome de uma religião ou civilização inteira, seu discurso fatalmente conterá demagogia e ignorância, pura e simples. Não -para eles, Ocidente é Ocidente, islã é islã. O desafio que os políticos ocidentais têm pela frente, diz Huntington, consiste em garantir que o Ocidente se fortaleça cada vez mais e afaste todas os outros, em especial o islã.


Mais preocupante ainda é o fato de Huntington partir da premissa de que sua perspectiva, que consiste em olhar o mundo inteiro desde um ponto distante de todos os vínculos e lealdades ocultas comuns, é a correta, como se as pessoas estivessem à procura de respostas que ele próprio já encontrou. Na realidade, Huntington é um ideólogo -alguém que quer transformar "civilizações" e "identidades" em algo que elas não são, entidades estanques e fechadas, destituídas das múltiplas correntes e contracorrentes que animam a história humana e que, ao longo dos séculos, tornaram possível que essa história não apenas contenha guerras de religião e conquista imperial, mas que também seja feita de intercâmbios, fertilizações cruzadas e partilhas.


Essa história muito menos visível é deixada de lado na pressa de realçar a guerra ridiculamente comprimida e constrita que, de acordo com o argumento dele, seria a realidade. Quando Huntington publicou seu livro com o mesmo título, em 1996, ele procurou conferir a seu argumento um pouco de sutileza e mais notas de rodapé, mas o que conseguiu foi confundir a si próprio e mostrar a todos o quão desajeitado é como escritor, e deselegante como pensador. O paradigma básico do Ocidente versus o resto do mundo (ou seja, a oposição da Guerra Fria reformulada) continuou intocado, e é isso que persiste, de maneira muitas vezes insidiosa e implícita, nas discussões tidas desde de 11 de setembro.


O massacre cuidadosamente planejado e o atentado suicida horrendo e patologicamente motivado cometidos por um pequeno grupo de militantes de mente perturbada foram transformados em provas da tese de Huntington. Em lugar de enxergá-lo como o que foi, a apropriação de grandes idéias (estou usando o termo "grande" em um sentido amplo) por um minúsculo bando de fanáticos loucos, para finalidades criminosas, luminares internacionais, da ex-premiê paquistanesa Benazir Bhutto até o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, ponderaram publicamente sobre os problemas do islã, e, no caso do último, usaram as teses de Huntington para fazer arengas sobre a superioridade do Ocidente, sobre como "nós" temos Mozart e Michelangelo, enquanto "eles", não (desde então, Berlusconi fez um pedido pouco convincente de desculpas pelos insultos proferidos contra o islã).


Por que não, em lugar disso, enxergar paralelos -admite-se que seu caráter destrutivo seria menos evidente- entre Osama bin Laden e seus seguidores, por um lado, e seitas como o Ramo Davidiano ou os discípulos do reverendo Jim Jones, na Guiana, ou do grupo japonês Aum Shinrikyo, do outro? Mesmo o normalmente sóbrio semanário britânico "The Economist", em sua edição de 22 a 28 de setembro, não resistiu à tentação da generalização imensa e elogiou Huntington em termos extravagantes por suas observações "cruéis e abrangentes, mas nem por isso menos acertadas" sobre o Islã. "Hoje", diz a revista em um inadequado tom solene, Huntington escreve que "os cerca de 1 bilhão de muçulmanos do mundo "estão convencidos da superioridade de sua cultura e obcecados com a inferioridade de seu poder'". Será que ele entrevistou 100 indonésios, 200 marroquinos, 500 egípcios e 50 bósnios para chegar a isso? Mesmo assim, que espécie de amostragem seria essa?


Incontáveis editoriais em todo jornal e revista americanos e europeus que valem a pena ser mencionados acrescentam termos novos a esse vocabulário de gigantismo e apocalipse, cada utilização do qual claramente não visa esclarecer os leitores, mas sim inflamar suas paixões indignadas, na condição de membros do "Ocidente". O discurso em estilo Churchill é usado de maneira inapropriada por combatentes autonomeados na guerra do Ocidente e, especialmente, da América, contra aqueles que odeiam-no, saqueiam-no e o destróem-no, e pouquíssima atenção é dada a histórias complexas que contestam esse reducionismo e que vazaram de um território para outro, nesse processo passando por cima das fronteiras que, supostamente, deveriam nos separar em campos armados distintos e divididos.

Por que não enxergar paralelos entre Bin Laden e o Ramo Davidiano ou Jim Jones?


Esse é o problema dos rótulos não-esclarecedores como são "islã" e "Ocidente": eles confundem e induzem ao erro a mente que está tentando encontrar sentido numa realidade desordenada que se recusa a ser facilmente classificada ou arquivada em escaninhos. Eu me recordo de ter interrompido um homem que se erguera no meio do público após uma palestra que dei numa universidade da Cisjordânia, em 1994, e começara a criticar minhas idéias, tachando-as de "ocidentais", em oposição às idéias rigidamente islâmicas que ele próprio defendia. "Por que você está usando terno e gravata?" foi a primeira réplica simplista que me veio à cabeça. "Também são ocidentais." Ele se sentou com um sorriso constrangido, mas eu me lembrei desse incidente quando começaram a surgir informações sobre os terroristas de 11 de setembro, sobre como eles tinham aprendido todos os detalhes técnicos necessários para fazer o mal homicida que cometeram contra o World Trade Center e o Pentágono. Onde se traça uma linha divisória entre a tecnologia "ocidental" e, como declarou Berlusconi, a incapacidade do "islã" de fazer parte da "modernidade"?


É claro que isso não pode ser feito com facilidade. Mas, em última análise, como se mostram insuficientes os rótulos, as generalizações e as afirmações culturais! Em algum nível, por exemplo, paixões primitivas e know-how sofisticado convergem de maneiras que desmentem a existência de uma divisa fortificada, não apenas entre "Ocidente" e "islã", mas também entre passado e presente, nós e eles, isso sem falar nada sobre os próprios conceitos de identidade e nacionalidade, temas de divergências e discussões literalmente intermináveis. Uma decisão unilateral de traçar linhas divisórias claras, de empreender cruzadas, de opor nosso bem ao mal deles, de extirpar o terrorismo e, para adotar o vocabulário niilista de Paul Wolfowitz, de acabar com nações inteiras não torna as supostas entidades mais fáceis de se enxergar. Em lugar disso, mostra até que ponto é muito mais fácil fazer afirmações hostis com o objetivo de mobilizar paixões coletivas do que refletir, examinar, determinar o que estamos enfrentando realmente, dar-nos conta do caráter interligado de inúmeras vidas, não apenas as "deles", mas também as "nossas".


Numa série de três artigos notáveis, publicados entre janeiro e março de 1999 no "Dawn", o mais respeitado semanário do Paquistão, o falecido Eqbal Ahmad, escrevendo para um público muçulmano, analisou o que chamou de as raízes da direita religiosa, tecendo críticas muito contundentes à deturpação do islã cometida por absolutistas e tiranos fanáticos, cuja obsessão em regulamentar o comportamento pessoal promove "uma ordem islâmica reduzida a um código penal, destituída de seu humanismo, sua estética, suas buscas intelectuais e sua devoção espiritual". E isso, ele afirmou, "implica a afirmação absoluta de um aspecto da religião, geralmente tomado fora de seu contexto, e no desprezo total por outro. Esse fenômeno distorce a religião, amesquinha a tradição e deturpa o processo político, em toda parte onde se dá".


Como instância pontual dessa degradação, Ahmad apresenta primeiro o significado rico, complexo e pluralista da palavra "jihad" e, em seguida, demonstra que, dentro do contexto atual de redução mundial à guerra indiscriminada contra inimigos supostos, torna-se impossível "reconhecer (...) religião, sociedade, cultura, história ou política islâmicas conforme vividas e sentidas pelos muçulmanos ao longo dos séculos". Os islamistas modernos, conclui Ahmad, "estão preocupados com o poder, não com a alma -em mobilizar pessoas para objetivos políticos, em lugar de para dividir e aliviar suas dores e seus anseios. As prioridades deles são extremamente limitadas e se dão dentro de um contexto restrito pelo tempo". O que agravou a situação é o fato de que distorções e fanatismo semelhantes ocorrem nos universos de discurso "judaico" e "cristão".


Foi Joseph Conrad, de maneira mais contundente do que poderiam ter imaginado seus leitores no final do século 19, quem compreendeu que as distinções entre a Londres civilizada e "o coração das trevas" caíam por terra rapidamente sob situações extremas e que os pontos mais altos da civilização européia podiam instantaneamente retroceder para as práticas mais bárbaras, sem preparo ou transição. E foi também Conrad, em "O Agente Secreto" (1907), quem descreveu a afinidade do terrorismo com abstrações como "ciência pura" (e, por extensão, "islã" ou "Ocidente"), além da degradação moral final do terrorista.





Pois existem vínculos mais próximos entre civilizações aparentemente em conflito do que a maioria de nós gostaria de acreditar, e, como mostraram tanto Freud quanto Nietzsche, a passagem sobre fronteiras cuidadosamente conservadas, mesmo que policiadas, muitas vezes se dá com facilidade assustadora. Mas tais idéias fluidas, repletas de ambiguidade e ceticismo quanto aos conceitos aos quais nos atemos, não chegam a nos prover diretrizes apropriadas e práticas para uso em situações como essa que agora nos confronta. Vêm daí os termos muito mais tranquilizadores (cruzada, bem contra o mal, liberdade versus medo, etc.), que derivam da oposição traçada por Huntington entre islã e Ocidente, da qual, nos primeiros dias, o discurso oficial tirou seu vocabulário. Desde então temos visto um abrandamento notável nesse discurso, mas, a julgar pela escalada ininterrupta de discursos e ações de repúdio e ódio, sem falar nos casos de esforços de policiamento, dirigidos contra árabes, muçulmanos e indianos em todo os EUA, o paradigma continua a ser visto como real.


Ainda outra razão dessa persistência é a presença inquietante de muçulmanos em toda a Europa e nos Estados Unidos. Pense nas populações atuais da França, Itália, Alemanha, Espanha, Reino Unido, EUA e até mesmo Suécia e você será obrigado a admitir que o islã já não se encontra apenas na periferia do Ocidente, mas em seu centro. Mas o que há de tão ameaçador nessa presença?


Soterradas no fundo da cultura coletiva há memórias da primeira grande conquista árabe-islâmica, que começou no século 7º e que, conforme escreveu o célebre historiador belga Henri Pirenne em seu notável livro "Mohammed and Charlemagne" ("Muhammad e Carlos Magno"), de 1939, rompeu de uma vez por todas a unidade do mediterrâneo na antiguidade, destruiu a síntese cristã-romana e propiciou o surgimento de uma nova civilização dominada por potências setentrionais (a Alemanha e a França carolíngia), cuja missão, ele parece dizer, consiste em retomar a defesa do "Ocidente" contra seus inimigos histórico-culturais.


O que Pirenne deixou, infelizmente, de dizer é que a criação dessa nova linha de defesa do Ocidente aproveitou inúmeros elementos do humanismo, da ciência, filosofia, sociologia e historiografia do islã, que já se haviam interposto entre o mundo de Carlos Magno e a antiguidade clássica. O islã está dentro do Ocidente desde o início, como foi obrigado a admitir o próprio Dante, grande inimigo de Muhammad, quando situou o Profeta no próprio coração de seu Inferno.


Existe, também, o legado persistente do próprio monoteísmo, das religiões abraâmicas, como tão bem as descreveu Louis Massignon. Começando com o judaísmo e o cristianismo, cada uma é sucessora assombrada pela que a antecedeu. Para os muçulmanos, o islã vem preencher e concluir a linha das profecias.


Ainda não existe história ou desmistificação respeitáveis da rivalidade multifacetada entre esses três seguidores -nenhum dos quais forma um campo monolítico ou unificado- do mais ciumento de todos os deuses, se bem que a sangrenta convergência contemporânea sobre a Palestina ofereça uma rica instância secular daquilo que tem sido tão tragicamente irreconciliável neles.


Assim, não surpreende que muçulmanos e cristãos não hesitem em falar em cruzadas e jihads, ambos suprimindo a presença judaica com um pouco caso que chega a ser fantástico. Um ideário desse tipo, diz Eqbal Ahmad, "é muito tranquilizador para os homens e mulheres presos no meio (...) entre as águas profundas da tradição e da modernidade".


Mas todos nós estamos nadando nessas águas -ocidentais, muçulmanos e outros. E, como as águas fazem parte do oceano da história, tentar ará-las ou dividi-las com barreiras é inútil. São tempos tensos estes que vivemos, mas é melhor pensar em termos de comunidades poderosas e impotentes, da política secular da razão e da ignorância e dos princípios universais da justiça e da injustiça do que nos perdermos na procura de abstrações vastas que podem conferir satisfação temporária, mas pouco autoconhecimento ou análise fundamentada.


A tese do "Choque de Civilizações" é um truque como o foi "A Guerra dos Mundos", que se saiu melhor na tarefa de reforçar o orgulho próprio defensivo do que na de fomentar a compreensão crítica da atordoante interdependência de nossos tempos.


·  O ensaísta Edward Said é um dos principais intelectuais palestinos. Radicado nos EUA, é autor de vários livros, entre eles "Orientalismo", "Cultura e Imperialismo" e a autobiografia, "Out of Place"

·  Tradução de Clara Allain